61

Spoilorando best sellers...


"Importa-se que eu seja a sua família?", perguntou ele, quebrando um longo silêncio melancólico.

Dona Graça olhou-o, surpreendida, algures entre intrigada e divertida.

"O senhor? Minha família?"

"Sim, porque não?" Encolheu os ombros. "Se ninguém a vem visitar, o que tem a senhora a perder?"

Ela baixou os olhos verdes, subitamente brilhantes pela comoção; não esperava tanta generosidade daquele estranho para com uma velha que a família parecia ter esquecido.

"Está bem", sussurrou, quase inaudível. "Pode ser". Tomás estendeu o braço à mãe e ficaram ali os dois sentados, de mãos dadas, ambos a fruir o calor terno e meigo da mão do outro, a desfrutar das carícias doces do sol da manhã, do grinfar melodioso das andorinhas, do aroma revigorante da relva, e do rumor das árvores a ondularem suavemente. Deixando-se embalar por aquele concerto da natureza, Tomás admirou a verdura com os olhos de quem sabe que tudo é fugaz, a vida é fragil, o que começa há-de acabar. As plantas e as flores farfalhavam diante de si como se o ritmo a que dançassem tivesse a marca da eternidade, quando afinal eram tão efémeras quanto a brisa que as agitava.

FIM 


José Rodrigues dos Santos, O Sétimo Selo

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a) o rapaz devia ter tirado a carteira do bolso. O azeite a escorrer do braço também não ajuda;
b) o photoshop nem sempre é a melhor opção. Falta um bocado da barriga da moça;
c) nua?! Não me fodam!...

59

Foi na livraria do Corte Inglês, aquela junto ao parque de estacionamento (não sei se há lá outra), eu cheio de pressa com o livro de receitas do bacalhauqueralho para oferecer à senhora minha mãe e ela, uma taça de gelatina cheirosa, à minha frente:
- E o livro é bom? E não pode fazer um desconto? É que tem ali alguns maiores, que são mais baratos... É um romance, tem a certeza?
Foda-se!, pensei eu, esta merda não me está a acontecer! 
A mulher da livraria, uma milf toda boa, com uma paciência do camandro a dizer que nunca tinha lido aquele livro, mas as críticas tinham sido boas. Uma aldrabice do caralho!!!, quase gritei pelas órbitas dos olhinhos, boas criticas só se for em casa do Chagas!! aquela merda nem livro parece, parece um tijolo, muitas páginas para justificar o preço, uma capa fofinha para atrair as pestanas rimeladas das ávidas leitoras, e uma histórinha de amor, com sexo animal à mistura (se fosse bem escrito, eu até esgalhava o menino com aquilo, mas não dá, não dá mesmo, a base já vem líquida, não há rumo, nem ritmo, nem merda nenhuma) e muitas gajas e gajos a fingir que são iguais a nós, tudo num português de aviar velhotas.
A querida continuava indecisa, ora olhava para o bacamarte que tinha na mão, ora olhava para as prateleiras. Aposto que se soubesse fazer contas de cabeça, já teria feito o preço à página, para optar pela solução mais vantajosa. Se ao menos o iphone tivesse máquina de calcular, pensaria aquele cerebrozinho amarrotado.
A milf, (mesmo bonita, 'da-se, que morena, que sorriso), a tentar que ela se decidisse, enquanto via a fila de fregueses bufões a crescer. Atrás de mim, um casal aos gritos, mas que merda, discussão de panelas agora??!!?? Passei-me, ceguei até ao olho do cu, dei um passo em frente e cheguei-me mesmo à beirinha da nalgaria da fofa, fingi espreitar por cima do ombro dela, e falei baixinho, no meu tom de voz Bond, James Bond: adoro esse livro, a minha namorada comprou-o no mês passado (não vá a gaja querer fiambre em rolo, melhor mostrar já a indisponibilidade) e eu fiquei fã dessa escritora. Compre sem medo, a sua sobrinha vai adorar... 
Caralho... devia ter tirado uma selfie, só para vos provar como tudo o que aqui escrevo neste 59 é verdadinha pura e dura (mentira, que gente burra não me dá tusa, tava bem mole na altura, mesmo depois de lhe cheirar o creme hidratante do pescoço).
A gaja sorriu-se toda, eu cheguei-me para trás, não fosse ela pensar que eu fazia parte do pack do livrinho de merda, mandou embrulhar, pagou, despediu-se com mais três ou quatro sorrisos convidativos e a milf (caraças, já disse que era linda?) sorriu-me também.  A vida continuou como deve ser, sempreàbrir!



(depois conto como foi a minha vez com a Laura, nome da milf, e o livro de receitas para a senhora minha mãe, que é tão chatínhaaaaaa)

57

Viste o céu esta manhã, Tininha? Quase tão bonito quanto os teus olhos verde garrafa de musgo, só que em azul e com farrapitos de nuvens. Límpido, é a palavra que procuro, ou talvez definido, concreto, aberto, sem aquela luz de agosto que nos cega. Ao fundo, as terras baixas, depois o rio, como naquela fotografia do Andreas Gursky, mas muito mais bonito. Vim o caminho todo a pensar em ti, minha mafarrica pimpona. Se até o céu te traz, porque insistes em palmilhar p'ra tão longe?

56

Gisele Burca, jura? Não quero crer nos tabloides franceses, mon amour, mas aquele sandalinha parece uma pista quente.
Gisele Burca, jura?  Cirurgia plástica preciso eu, precisa minha vida, a economia do País e os malucos da internet. Você pode envelhecer belamente sem nenhum retoque, nenhuma empinadinha, nenhum freio no ritmo acelerado do tempo – você já é uma vitória contra ele, o tempo, esse velhaco jogador de pôquer.
Mas vá lá. Eu sei, Gisele. O corpo é seu, a vida é sua, e você tem o mesmo direito de qualquer Panicat, de qualquer miss bumbum, participante de reality show ou dona de casa. Ninguém tem nada a ver com os seus paranauês. “Faça o que tu queres pois é tudo da lei”, belê?
Mas Gisele, pensa, de burca? Neste mundo tão medonho, tão cheio de fundamentalistas, de gente cheia de razão e acesso à internet, você vai dar essa brecha? Vai dar combustível para os ofendidos de plantão, Gi?
Sim, esse mundo medonho (como eu já disse) é habitado por pessoas que se ofendem ao menor sinal de oposição. Não se pode mais pregar um cristo na cruz, não se pode mais brincar o carnaval evocando Alá e, definitivamente, não se pode mais comer um bife sem começar uma guerra.
Gisele, sério, de burca você teve ter atiçado toda essa gente cheia de razão: os radicais religiosos, as feministas, os machistas, os corintianos, os tucanos, petistas, veganos, confederados, blogueiros, comentaristas de internet, maçons, eurocentristas, umbandistas, góticos, israelenses, palestinos, índios, trans, Caetano, Gil, Pelé, Maomé, Buda, Jesus Cristo e o baile todo.
Uma modelo entrando de burca em uma clínica de cirurgia plástica não tem como dar certo, moça.
O que eu acho, no seu caso, Gisele Burca, é que faltou uma amiga. Alguém que te olhasse nos olhos e dissesse: “Porra, Gi, de burca? Vai dar merda! Esse bando de mala, de representantes de não sei lá o quê, vão encher o teu saco. Você não precisa dessa cambada no seu pé. Quer fazer a porra da cirurgia, quer? Então vai lá, de cara limpa, linda, e ainda manda um dedo do meio para os fotógrafos de plantão”.
Só que não. Quanta gente muda ao lado da Gisele Burca.
Vai ver não era ela. Tomara.
Aqui mesmo, no Brasil, esses dias aí, um menino morreu porque inventou de injetar hidrogel no pinto. O cara decidiu que tomar uma injeção no pau era uma boa ideia, que seria bom para o tamanho, a firmeza, grossura ou elasticidade.
Não, não quero fazer piada com essa tragédia. Só quero dizer que assim como no caso da Gisele Burca, o menino do hidrogel no pinto também não teve um amigo, um puto desocupado para dizer: “Porra, mano, isso vai dar merda. Injeção no pau é treta. Experimenta a bombinha, compra um enlarge your pênis e seja feliz”.
Modelo de burca entrando em clínica de cirurgia e hidrogel não pau estão entre as piores ideias do século.
Arrumem um amigo. Ouçam seus amigos. Sejam felizes e olhem para os dois lados ao atravessar a rua.

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Foda-se...


Piensa en esto: cuando te regalan un reloj te regalan un pequeño infierno florido, una cadena de rosas, un calabozo de aire. No te dan solamente el reloj, que los cumplas muy felices y esperamos que te dure porque es de buena marca, suizo con áncora de rubíes; no te regalan solamente ese menudo picapedrero que te atarás a la muñeca y pasearás contigo. Te regalan -no lo saben, lo terrible es que no lo saben-, te regalan un nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un bracito desesperado colgándose de tu muñeca. Te regalan la necesidad de darle cuerda todos los días, la obligación de darle cuerda para que siga siendo un reloj;
 
Julio Cortázar, Historias de Cronopios y Famas 
 
 
 
O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo; o derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.

      Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
 

54

Articula comigo, Tininha, És o meu corolário, caralho!

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Foda-se...


Ela chegou, pousou a mala. Ele, no sofá, olhou-a. Sorriram. Ela aproximou-se dele. Passou-lhe a mão pelo rosto. Sorriram. Ele abriu os braços, aconchegou-a como se aconchega a vida. E viveram.

Queres Casar Comigo Todos os Dias?, Pedro Chagas Freitas



A própria genialidade está indissoluvelmente ligada à estupidez; e a interdição, sob risco de se passar passar por estúpido, de falar demasiado de si foi contornada pela humanidade de modo original: inventando o escritor. Ele tem o direito, em nome do sentido do humano, de contar que comeu bem, que o sol brilha no céu, tem direito a exteriorizar, a divulgar segredos, a fazer confidências, a apresentar brutalmente balanços pessoais - [...] -; tudo isto como se a humanidade se autorizasse nesse caso excepcionalmente aquilo que se proíbe em todos os outros.

Da Estupidez, Robert Musil




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Tenho de me mover, não há outra forma, elas bem dizem que a posição é um aspecto fulcral do momento, mas explicar como se chega à coisa em remoinho é que nada. Com jeito, ainda que de tom ligeiramente irritado, digo, preciso de tirar o braço daí. Nada, o sujeito receptor da mensagem, que bem pode ser menina caloira de curso de filosofia, não reage ao pedido enrolado. O formigueiro começa a subir-me até ao ombro, as chispas chegam-me aos olhos, não controlo o diabo da boca e quase grito, foda-se!, deixa-me tirar o caralho do braço! arrependo-me instantaneamente, mas as ondas de voz já deixaram de me pertencer e ecoam no espaço circundante. Os olhos humedecem-se-lhe instantaneamente, porra!, sinto que exagerei na bruteza, sexo sensível não é o meu forte, não me agrada a mão dada, o beijinho na boca a toda a hora. Os animais não o fazem e a coisa corre-lhes bem. Acabo de processar estas palavras e já a consciência me tomba à boca, desculpa, é que me dói. Tento a reaproximação. E não sabes falar?! Precisas de me ofender?! Não tens educação?! guincha a criatura de olhos abertos. Paro, não gosto de chiadeiras, Ouve lá, mas ofendi-te em quê? Tratei-te mal? Chamei-te algum nome? silêncio. Vai à merda! Não falas assim comigo! Levantou-se, [finalmente, caralho! que dor no braço], e começou à procura das cuecas. Quando terminou de se arranjar, bateu a porta e saiu. Ou foi, saiu e bateu a porta?